Patrimônios da Humanidade

Patrimônios da Humanidade

08 setembro 2012

Série Documentos. Independência do Brasil.


Série Documentos. Independência do Brasil.


Percursos Históricos, Ano II, vol. set., série 07/09, 2012.


DOCUMENTO I.

Manifesto da Nação Portuguesa aos Soberanos e Povos da Europa, 1820.

A Nação Portuguesa animada do mais sincero, e ardente desejo de manter as relações políticas, e comerciais, que até agora a tem ligado a todos os Governos e Povos da Europa; e tendo ainda mais particularmente a peito continuar a merecer na opinião, e conceito dos homens ilustrados de todas as Nações a estima e consideração, que nunca se recusou ao carácter leal e honrado dos Portugueses: julga de indispensável necessidade oferecer ao público a sucinta, mas franca exposição das causas, que produzirão os memoráveis acontecimentos há pouco sucedidos em Portugal; do verdadeiro espírito que os dirigiu; e do único alvo, a que tendem as mudanças, que se têm feito e pretendem fazer na forma interna da sua Administração: E confia que esta exposição, rectificando as erradas ideias, que porventura se hajam concebido dos referidos acontecimentos, merecerá a benévola atenção dos Soberanos, e dos Povos.



Toda a Europa sabe as extraordinárias circunstâncias, que no ano de 1807 forçaram o Senhor D. João VI, então Príncipe Regente de Portugal, a passar com a Sua Real Família aos seus domínios transatlânticos: E posto que esta resolução de Sua Majestade se julgou então mais reconhecida vantagem para a causa geral da Liberdade Pública da Europa, ninguém contudo deixou de prever a crítica situação em que ficava Portugal por esta ausência do seu Príncipe, e os factos ulteriores provaram demonstrativamente que esta previdência não era vã, e temerária.

Portugal, separado do seu Soberano pela vasta extensão dos mares, privado de todos os recursos de suas possessões ultramarinas, e de todos os benefícios do comércio pelo bloqueio de seus portos, e dominado no interior por uma força inimiga, que então se julgava invencível, parecia haver tocado o último termo da sua existência política, e não dever mais entrar na lista das Nações independentes.

Em tão apurada crise, este Povo heróico não perdeu nem a honra, nem o valor, nem a fidelidade ao seu Rei; porque estes sentimentos não lhe podiam ser arrancados do coração pela violência das circunstâncias, nem pela força prepotente do inimigo. Eles se manifestaram efectivamente, da maneira mais enérgica, logo que se ofereceu conjunção oportuna. Os Portugueses, com o auxílio dos seus Aliados; conquistaram à custa dos mais penosos sacrifícios a sua própria existência política, restituíram com generosa lealdade, ao seu Monarca, o Trono e a Coroa, e a Europa imparcial há-de confessar ( ainda que nem sempre se tenha feito esta justiça) que a eles deve também em grande parte os triunfos, que depois alcançou em beneficio da liberdade, e independência dos Tronos e dos Povos.

Qual fosse porém a situação interna de Portugal depois de circunstâncias tão novas, de esforços tão extraordinários, e de um transtorno tão universal e transcendente, mais fácil é concebê-lo do que exprimi-lo.

A ruína da sua povoação, começada pela emigração dos habitantes, que seguiram o seu Príncipe, ou procuraram escapar à suspeitosa desconfiança, ou à perseguição sistemática do inimigo, aumentou-se pelas duas funestas invasões de 1809 e 1810, e pelas perdas inevitáveis de uma dilatada e porfiosa guerra de sete anos.

O Comércio e a indústria, que nunca podem devidamente prosperar, senão à sombra benéfica da paz, da segurança e da tranquilidade pública, tinham sido não só desprezados e abandonados; mas até parece que de todo destruídos pela ilimitada franqueza concedida aos vasos estrangeiros em todos os portos do Brasil; pelo desastroso Tratado de 1810; pela consequente decadência das fábricas e manufacturas nacionais, pela quase total extinção da marinha mercante e militar, e por uma falta absoluta de todo o género de providências, que protegessem, e animassem, estes dois importantíssimos ramos da prosperidade pública.

A Agricultura, base fundamental da riqueza e força das Nações, privada dos braços que lhe roubara o exército e a morte; destituída dos capitais que a sustentam, e que talvez se haviam empregado em objectos de mais instante necessidade; desamparada do alento e vigor vital que costuma dar-lhe a indústria nacional, e o giro activo do Comércio tanto interno, como externo, jazia em mortal abatimento, e somente oferecia ao espectador admirado, o triste quadro da fome e da miséria.

A sensível diminuição das rendas públicas causada pela ruína da povoação, do comércio, e da indústria; pela perda irrevogável dos grandes cabedais que o inimigo extorquira violentamente das mãos dos Portugueses, e pelas excessivas despesas da guerra; obrigando a Nação a contrair novas, e avultadas dívidas, para cuja satisfação eram desiguais os seus recursos; acabou de dar o último golpe no Crédito público, já vacilante pela escandalosa malversação dos agentes fiscais, e ainda mais pelo errado sistema da administração.

Se os Portugueses não amassem, e respeitassem o seu Príncipe, e a sua Augusta Dinastia com uma espécie de amor, e adoração quase religiosa; se não quisessem receber da sua só justiça, e beneficência as reformas, e melhoramentos públicos; que um tal estado de coisas imperiosamente exigia; muito fácil lhes seria, naquela época, pôr limites ao poder, ou ditar-lhes condições acomodadas a tão urgentes circunstâncias. Eles não ignoravam seus direitos: a tendência geral da opinião, dirigida pelas luzes do século, e sobejamente manifestada entre os povos mais civilizados da Europa, os convidava a fazer uso desses direitos, que os seus maiores haviam já reconhecido; e exercitado em ocasiões menos forçosas: o exército vitorioso e triunfante apoiaria tão justas pretensões, e a Nação seria hoje livre, ou certamente menos desditosa.

Porém o carácter dos Portugueses nunca soube desmentir-se. Eles quiseram antes esperar tudo do seu Príncipe, do que dar à Europa, ainda aflita das passadas desgraças, o espectáculo de uma Nação seria hoje insofrida, e inquieta; ou parecer que abusavam da facilidade, e oportunidade das circunstâncias para se mostrarem revoltosos, ou menos submissos. O sofrimento silencioso, e pacífico de seus males foi a base dos seus procedimentos : a confiança nas reconhecidas virtudes do Príncipe, o fundamento de suas esperanças.

Mas (é forçoso dizê-lo!) estas esperanças foram perfeitamente baldadas, e aquele sofrimento foi levado ao último termo, a que parece poder chegar a paciência de uma Nação briosa, cheia do sentimento das suas desgraças, e não ignorante dos meios de remediá-las.

Não é preciso para prova desta penosa verdade renovar agora aqui o triste quadro da situação progressivamente decadente de Portugal em todos os ramos de sua administração, nos seis anos que tem decorrido desde a paz geral da Europa até ao presente. A Europa toda, ou o tem presenciado, ou o tem ouvido recontar de com mágoa: e os Augustos Soberanos das diferentes Nações não podem deixar de ter sido informados de tamanha desventura pelos seus Ministros ou Agentes Diplomáticos, que havendo lido na História o esplendor, a glória, e a grandeza, a que em outros tempos chegaram os Portugueses, terão sem dúvida admirado, e não poucas vezes lamentado, o incompreensível abatimento, a que se acha reduzido este Povo, que nos favores, e benefícios da natureza não cede a nenhum outro Povo da Europa.

A sua povoação, já exausta pelos motivos que ficam indicados, continuou a ser depauperada pela forçada remessa para o Brasil de alguns milhares de homens, que depois de terem exposto as suas vidas pela Pátria, e pelo Trono, e de haverem merecido descansar em tranquila paz no seio de suas famílias, ou gozarem no seu país natal o prémio de seu zelo e valor, foram continuar na América do Sul os duros trabalhos de guerra; de uma guerra que fazendo-se a tamanha distância de Portugal, parece que somente sobre este Reino tem descarregado seus pesados golpes, atacando por muitos modos as fontes essenciais do seu vigor, e expondo-o ao mesmo tempo às empresas de uma nação vizinha, e poderosa, sempre rival, e agora estimulada, e até (em sua opinião) ofendida e agravada.

O comércio, em vez da protecção solícita, que a sua situação demandava, e que ainda poderia conservar-lhe algum alento de vida, e ressuscitá-lo pouco a pouco do mortal letargo a que se achava reduzido, não obteve senão raras e mesquinhas providências, que não sendo o resultado de combinações judiciosas sobre o verdadeiro estado comparativo das relações comerciais dos diferentes povos da Europa, nem ligadas entre si, e dependentes de um sistema geral adaptado às presentes circunstâncias ; ou faziam cada vez mais difíceis e complicadas as suas transacções, ou até cediam em prejuízo directo do comércio nacional, transportando todas as suas vantagens às mãos dos estrangeiros, e desviando da circulação pública os capitais que nele deviam empregar-se.

A indústria não foi mais favorecida, nem era de esperar que a sua sorte fosse mais feliz. Os Portugueses viram e sofreram, que as suas fábricas, e manufacturas fossem destruídas e quase de todo aniquiladas : Que os produtos do seu trabalho não pudessem suportar a concorrência dos estrangeiros: Que os móveis mais insignificantes de suas casas, os vestidos e roupas do trajo mais ordinário e usual, as próprias camisas e sapatos que vestem e calçam, lhe fossem trazidos de fora, deixando inumeráveis artífices e oficiais na ociosidade e na miséria. Os Portugueses viram e sofreram, que os seus vasos mercantes lhe fossem roubados por amigos e inimigos: Que andassem expostos aos insultos dos piratas, e fossem por eles apresados até à vista de suas próprias fortalezas. Os Portugueses viram, e sofreram... mas para quê renovar aqui tão profundas e sensíveis mágoas? para quê recordar males tão notórios; e tão universalmente sentidos?... Digam-no os próprios estrangeiros: digam-no os mesmos que têm tirado proveito da espantosa indiferença ou frouxidão do Governo Português, e que não poucas vezes repetiram com honrada franqueza “que este belo país era digno de melhor sorte”.

A Agricultura, no meio de tamanho abandono de todos os interesses públicos, não era natural que obtivesse a particular atenção e desvelo que por sua reconhecida influência sobre a felicidade das nações que é devido. Peja-se o brio Português de confessar haver recebido da generosidade de uma Nação estrangeira ténues socorros a beneficio da classe a mais útil, e a mais miserável dos seus habitantes: socorros, que não podendo produzir utilidade alguma real, nem pelo seu valor, nem pelo modo da sua distribuição, somente serviram de patentear aos olhos da Europa espantada, o profundo abismo de miséria, a que esta Nação, outrora rica e opulenta, se achava reduzida.

A Providência quis favorecer o agricultor Português, abrindo em seu benefício o seio fecundo da terra, e dando-lhe anos de copiosa colheita: mas este mesmo favor do Céu foi inutilizado pelos erros dos homens. O numerário tinha desaparecido da circulação pela estagnação do comércio, pela ruína da indústria, pelas avultadas somas que todos os dias passavam sem retorno aos estrangeiros, em troca dos géneros indispensáveis ao consumo da Nação, e pelas continuadas remessas eventuais ou regulares, que se faziam para o Brasil com diferentes motivos e aplicações, chegando a tal ponto a falta de giro, e consequentemente a pobreza pública, que no meio da abundância de pão, aumentada ainda por uma importação excessiva, e imprudentemente tolerada deste género, o povo morria de fome; o lavrador desamparava as suas terras e os seus trabalhos; todos lamentavam a geral penúria; e a cada momento se temia, que a desesperação rompesse em tumultos, e que os tumultos degenerassem na mais completa e horrível anarquia.

Sendo tal o estado em que se achavam as principais fontes da prosperidade riqueza nacional, fácil é de conjecturar qual seria também o estado do Tesouro, e do Crédito Público.

Não somente se conservaram sem necessidade, e sem diminuição as antigas despesas proporcionadas à grandeza, aparato, e esplendor de uma Corte, que já não existia em Portugal; mas acrescentavam-se cada dia outras igualmente escusadas, e não menos exorbitantes, ao mesmo passo que decrescia sensivelmente a receita, já pelas causas indicadas, e já pela pasmosa negligência ou prevaricação dos administradores subalternos, a muitos dos quais a impunidade, afiançava de algum modo o pacifico uso de suas criminosas Especulações.

Sobre estes males acresceram ainda as extraordinárias despesas de algumas expedições marítimas, destinadas a fornecer tropas à desastrosa guerra da América do Sul, e os contínuos saques de moeda para soldo e manutenção da porção do exército Português ali destacada: despesas, que tirando irrevogavelmente grandes somas do giro nacional, tinham ao mesmo tempo a mais nociva influência sobre o valor do dinheiro papel, cujo câmbio se tornava de dia em dia mais desfavorável e mais ruinoso.

Os empregados públicos, o Corpo Militar, os melhores e mais úteis servos do Estado sofriam um extraordinário (atrazamento - no original) atraso na satisfação de seus merecidos salários, e ao mesmo tempo que esta falta abismava a uns na miséria e na desesperação, excitava a outros a romper em altos e perigosos clamores, ou a aventurarem-se aos excessos da mais funesta venalidade e corrupção.

Os credores do Estado invocavam em vão a fé pública, e o cumprimento das sagradas promessas que se lhes haviam feito, e sobre as quais somente se podia manter o crédito do Tesouro, e a esperança de novos recursos, quando fossem necessários.

Enfim, que precisando ultimamente o Erário de abrir um empréstimo de quatro milhões de cruzados, e parecendo de esperar, que a própria estagnação do comércio convidasse os capitalistas a entrarem à porfia nesta negociação, que parecia de segura vantagem pelo valor das hipotecas oferecidas ao pagamento do juro regular, e à amortização do capital, não foi possível (com vergonha o dizemos) preenchê-lo, nem ainda quando o Governo, trespassados os limites da espontaneidade, que ao princípio anunciara, quis forçar a isso os capitalistas, e proprietários, por meio de uma derrama calculada sobre a avaliação da propriedade individual, e dos pressupostos fundos de cada casa comerciante.

Em meio de tantas desgraças, que por espaço de seis anos oprimiram os Portugueses em progressivo crescimento, ainda de vez em quando se avivava em seus corações algum lume de esperança de que o Rei viria ao meio deles ouvir suas queixas, e dar o possível remédio a males tão rezados e opressivos. Conheciam por experiência a natural bondade do seu coração, herdada de seus augustos Avós, e sempre propensa a promover a felicidade dos povos de seus Domínios: e confiavam que ela lhes prepararia as reformas, melhoramentos, e benefícios, de que tanto necessitava em todos os ramos da publica administração - Sua Majestade parecia haver dado por algumas vezes lugar a esta lisonjeira esperança.

Ela porem foi-se desvanecendo pouco a pouco, e o Ministério do Rio de Janeiro, que talvez desviava do ânimo do Rei o pensamento de realizá-la, até sofria de mau grado, que algum cidadão amigo da sua Pátria ousasse expor ao público, as suas opiniões sobre este importante objecto, e mostrasse as vantagens de se restituir a Portugal a sede da Monarquia.

Desta maneira começaram os Portugueses a desconfiar do único recurso, e meio de salvação, que ainda parecia restar-lhes no meio da quase total ruína da sua cara Pátria. A ideia do estado de Colónia, a que Portugal em realidade se achava reduzido, afligia sobre maneira todos os cidadãos, que ainda conservavam, e prezavam o sentimento da dignidade nacional. A justiça era administrada desde o Brasil a povos fiéis da Europa, isto é, desde a distância de duas mil léguas, com excessivas despesas, e delongas, e quando a paciência dos vassalos estava já fatigada e exausta de fastidiosas, e talvez iníquas formalidades. Muitas vezes se desviavam dos olhos e atenção do Rei, ao arbítrio dos Ministros, e válidos, as representações, que se dirigiam ao Trono, e que não podiam ser ao menos acompanhadas das importunações, e lágrimas dos pretendentes. Todos enfim conheciam a impossibilidade absoluta de pôr em marcha regular os negócios públicos e particulares de uma Monarquia, achando-se a tamanha distância o centro de seus movimentos, e sendo estes muitas vezes impedidos ou retardados pela malignidade dos homens, pela violência das paixões, e até pela força dos elementos.

Esta mesma distância, dificultando as queixas dos povos ou dos indivíduos oprimidos, fazia mais ousada a iniquidade dos maus administradores da Justiça, e dos infiéis depositários de qualquer porção de Autoridade Pública. A torpe venalidade tinha corrompido tudo. A ambição, a avareza, o egoísmo insensato haviam substituído o amor da ordem pública, o amor da Pátria, virtudes em outro tempo tão familiares ao Povo Português, e origens verdadeiras dos heróicos feitos, que a Europa ilustrada ainda hoje admira, e admirará sempre na História desta grande Nação. Todos os vínculos sociais se achavam relaxados; todos os interesses em contradição; todas as opiniões em discórdia; todos os partidos em divergência; todas as paixões e vícios em campo, e em combate. Um único sentimento era comum a todos os Portugueses – o da sua profunda desgraça. Em um só desejo se uniam todos os bons cidadãos – o de uma nova ordem de coisas, que salvasse a nau do Estado, do lamentável e miserando naufrágio, em que ia perder-se.

Que deveria pois fazer o Povo Português, uma Nação inteira, em tão apurada situação? – Sofrer, e esperar? – Ela sofreu, e esperou em vão por largos anos. – Gemer, representar, queixar-se? – Ela gemeu, e os seus gemidos não foram escutados: que dizemos não foram escutados? Foram reprimidos, foram cruelmente sufocados. – Ela representou, e queixou-se; mas as suas queixas, e representações não chegavam aos degraus do Trono. Dizia-se ao Rei que os seus povos viviam contentes, e eram fiéis... Sim, eles eram, e são fiéis: nenhuma Nação do mundo tem dado mais constantes provas de amor aos seus Príncipes, de lealdade aos seus Monarcas. – Agora mesmo eles têm protestado, e protestam ainda à face da Europa, e do mundo inteiro, a mais firme adesão ao seu Rei, e à sua Augusta Família, a quem cordialmente amam, e adoram: mas eles não viviam contentes, nem o contentamento pode jamais aliar-se numa Nação com a pobreza, e miséria, com a triste decadência de todos os estabelecimentos úteis, com a perda de dignidade, e da consideração pública, com a ignorância sistematicamente introduzida ou sustentada, com a ruína enfim da honra, da glória, e da liberdade nacional. – Eles não eram felizes, e quiseram sê-lo. – Pode disputar-se a alguma Nação este direito, e os meios de o exercitar, e pôr em prática? Pode algum povo, grande ou pequeno, alguma associação de homens racionais prescindir deste direito inalienável, para sujeitar-se irrevogavelmente ao arbítrio de algum ou de alguns homens, para obedecer cegamente a um poder ilimitado, a uma vontade, que pode ser injusta, caprichosa, desregrada? Para deixar-se levar ao abismo da desgraça sem dar um passo que o desvie do precipício, sem fazer um esforço generoso para salvar-se?

O Povo Português apela para o sentimento íntimo de todos os seus concidadãos, dos homens ilustrados de todos os países, dos Povos da Europa, e dos Augustos Monarcas que os regem.

Não são, como se diz, os falsos princípios de um filosofismo absurdo, e desorganizador das sociedades. – não é o amor de uma liberdade ilimitada, e inconciliável com a verdadeira felicidade do homem, que o tem conduzido em seus patrióticos movimentos. - É o sentimento profundo da desgraça pública, e o desejo de remediá-la – é a necessidade inevitável de ser feliz, e o poder que a natureza depositou em suas mãos de empregar os recursos próprios para o conseguir.

A natureza fez o homem social para lhe facilitar os meios de prover à sua felicidade, que é o fim comum de todos os seres racionais. As Sociedades não podem existir sem governo: a natureza, pois, aconselha a existência desse governo, autoriza o poder que ele deve exercitar; mas um poder subordinado ao fim – um poder limitado pelo seu próprio destino – um poder que deixa de merecer este nome para tomar o odioso nome de tirania, logo que exorbitando dos seus naturais limites, impede, em lugar de promover, a felicidade dos povos que lhe estão sujeitos.

De qualquer modo que este poder tenha sido exercitado numa Nação, ou por um, ou por muitos; ou concentrado, ou repartido; ou limitado por leis expressas, ou confiado sem alguns limites – nem a força das armas, nem os hábitos inveterados, nem o decurso dos tempos podem jamais despojar essa Nação da faculdade, e invariável direito, que sempre conserva, de rever suas leis fundamentais, de rectificar seus primeiros passos, de melhorar a forma do seu Governo, de prescrever-lhe justos limites, e de fazê-lo útil à colecção dos associados. A própria Nação inteira, se em massa pudesse exercitar os poderes do Governo, não os teria ilimitados; porque nenhuma sociedade poderia razoavelmente querer aprovar, autorizar a sua própria infelicidade, e comum desgraça.

Eis aqui, pois, os verdadeiros princípios que dirigiram os Portugueses; que os constituíram na indispensável, e absoluta necessidade de levantarem unânimes a voz, não para ofenderem, ou menosprezarem o seu Príncipe; não para o despojarem, ou à sua Augusta Casa dos direitos que por tantos títulos, e muito especialmente por sua bondade, clemência, e amor de seus povos, tem adquirido sobre os corações de todos eles; não, enfim, para colocarem sobre o Trono a licença, a imoralidade, e a absurda e bárbara anarquia: mas sim para darem a esse Trono as bases sólidas da Justiça, e da Lei; para o libertarem das insídias da lisonja, dos laços da ambição, das astúcias da arbitrariedade; para o fazerem firme, sem poder ser injusto; para o porem a igual distância dos excessos violentos do despotismo tirânico, e da frouxidão não menos funesta do negligente e inerte desmazelo.

Foram estes os votos de todos os Portugueses, quando proclamaram a necessidade de uma Constituição, de uma Lei fundamental, que regulasse os limites do Poder e da Obediência; que afiançasse para o futuro os direitos e a felicidade do Povo; que restituísse à Nação a sua honra, a sua independência e a sua glória; e que sobre estes fundamentos mantivesse firme e inviolável o Trono do Senhor D. João VI, e da Augusta Casa, e Família de Bragança, e a pureza, e esplendor da Religião Santa, que em todas as épocas da Monarquia tem sido um dos mais prezados timbres dos Portugueses, e tem dado o mais nobre lustre a seus heróicos feitos.

Debalde se pretende caluniar este generoso esforço, qualificando-o de inovação perigosa. Os homens doutos, e imparciais, versados na História das Nações, sabem que em todas as idades os povos oprimidos reconheceram o mesmo direito e o empregaram ainda com maior amplitude. A mesma História de Portugal subministra exemplos disso, e a actual Casa Reinante a um semelhante esforço deve a sua exaltação, e a sua mais distinta glória. Se a moderna Filosofia criou o sistema científico do Direito Público das Nações e dos Povos, nem por isso inventou ou criou os direitos sagrados, que a própria mão da natureza gravou com caracteres indeléveis nos corações dos homens, e que tem sido mais ou menos desenvolvidos, mas nunca de todo ignorados.

Os Portugueses deram o Trono em 1139 ao seu primeiro ínclito Monarca, e fizeram nas Cortes de Lamego as primeiras Leis Fundamentais da Monarquia. – Os Portugueses deram o Trono em 1385 ao Rei D. João I, e lhe impuseram algumas condições, que ele aceitou e guardou. – Os Portugueses deram o Trono em 1640 ao Senhor D. João IV, que também respeitou, e guardou religiosamente os foros e liberdades da Nação. – Os Portugueses tiveram sempre Cortes até 1698, nas quais se tratavam os mais importantes negócios relativos à Política, Legislação e Fazenda: e neste período que abrange a mais de cinco séculos, os Portugueses se elevaram ao cume da glória, e da grandeza, e se fizeram credores do distinto lugar, que a despeito da inveja, e da parcialidade hão-de sempre ocupar na História dos Povos Europeus. O que hoje, pois, querem, e desejam, não é uma inovação: é a restituição de suas antigas e saudáveis instituições corrigidas e aplicadas segundo as luzes do século e as circunstâncias políticas do mundo civilizado: é a restituição dos inalienáveis direitos, que a natureza lhes concedeu, como concede a todos os Povos; que os seus maiores constantemente exercitaram, e zelaram; e de que somente há um século foram privados, ou pelo errado sistema do Governo, ou pelas falsas doutrinas, com que os vis aduladores dos Príncipes confundiram as verdadeiras e sãs noções do Direito Público.

O nome de rebelião, a qualificação de ilegitimidade têm sido igualmente empregados para com eles se manchar a glória dos Portugueses, para se fazerem odiosos os seus patrióticos movimentos, para se atribuir a crime a sua nobre ousadia. Mas a rebelião é a resistência ao poder legítimo, e não é legítimo o poder, que não é regulado pela Lei, que se não emprega conforme a Lei, que não é dirigido ao bem dos governados, e para felicidade deles. – Não é ilegítimo senão o que é injusto, e não é injusto senão o que se pratica sem direito, ou contra direito.

Com semelhantes denominações pretendeu Filipe IV infamar perante as Cortes da Europa o glorioso levantamento dos Portugueses em 1640. A justiça prevaleceu: o Senhor D. João IV deixou de ser rebelde e usurpador : os Portugueses que o fizeram Rei foram heróis beneméritos da Pátria: e a Augusta Casa de Bragança começou a fazer as delícias da Nação. – Não pretendemos fazer o paralelo dessa época com a actual em todas as suas circunstâncias. Estamos muito longe de pretender comparar o carácter de El-Rei D. Filipe IV com o do Senhor D. João VI; os sentimentos do primeiro para com os Portugueses, com as virtudes que eles mesmos reconhecem no segundo, e com o amor e benevolência de que lhe são devedores. Mas nem por isso é menos certo que a Nação sofria ao presente a mesma pobreza, a mesma decadência, os mesmos vícios e a mesma opressão que naquela época. – Os seus direitos são os mesmos. – O desenvolvimento deles, que então se reputou legítimo não pode hoje ser criminoso.

Os que atribuem esse desenvolvimento, nas circunstâncias actuais de Portugal, a efeitos de uma facção, honram por certo em demasia este nome: porque nunca houve facção alguma nem tão sagrada nos seus motivos, nem tão desinteressada nas suas intenções, nem tão moderada nos seus procedimentos, nem tão unanimemente desejada, aprovada, aplaudida. Nunca houve facção alguma, que no curto espaço de trinta e sete dias mudasse a face de uma Nação inteira, e de uma Nação que se preza de religiosa, e leal, sem derramar uma só gota de sangue; sem dar lugar a um só insulto contra a autoridade, a um só ataque contra a propriedade pública ou individual; sem ocasionar a mais ligeira desgraça, ou desordem, ou ainda qualquer desagradável acidente. Nunca houve facção alguma, que com tão justa razão excitasse a admiração, e merecesse o aplauso dos estrangeiros, que a viram começar, que observaram o seu progresso, e o seu espírito, e que não podem deixar de render a devida homenagem ao carácter nobre, generoso e pacífico dos Portugueses, assim como muitas vezes lamentavam a sua triste decadência e infeliz situação.

À vista de tudo o que fica substanciado, não podem os Portugueses duvidar de que os seus patrióticos movimentos hajam de merecer, não só a mais favorável consideração, mas até justo louvor, tanto na opinião pública das Nações ilustradas, como na dos Gabinetes dos Soberanos, que regem os diferentes Povos da Europa.

Seria por certo bem doloroso para a Nação Portuguesa, que grandes, e poderosos Monarcas, com quem ela tem mantido em todos os tempos relações amigáveis, fiel, e religiosamente guardadas, e respeitadas, abusassem agora do seu poder, e superioridade para subjugá-la, e impor-lhe leis; ou empregassem a sua influência para reprimir o nobre, e ousado esforço de um Povo sobejamente humilhado, e infeliz, o qual achando-se impossibilitado pela sua situação geográfica, de estender o seu poder, de dilatar-se em conquistas, de perturbar os outros povos na livre e pacífica fruição de seus direitos, e de suas instituições, somente pode intentar, e somente intenta em realidade melhorar a sua sorte; reformar a sua interna administração; recobrar os direitos sagrados que a natureza lhe concedeu, de que já gozou, e de que nenhum poder a deve despojar; e finalmente restituir à Coroa do seu Augusto Príncipe a independência, o esplendor, e a glória que em mais felizes idades constituíram o seu melhor ornamento.

Nunca a Nação Portuguesa se intrometeu nos negócios internos das outras Nações da Europa. Ela reconhece e respeita os direitos que competem aos povos independentes, e deve esperar que também sejam reconhecidos e respeitados os que ela mesma tem por igual razão. Como poderia pois ver sem grande mágoa, que postergados a seu respeito estes direitos, se abusasse do poder, e da força para a conservar na humilhação, e no abatimento, para agravar mais a sua desgraça, para a fazer vítima de um poder ilimitado, e arbitrário, e para roubar-lhe o distinto lugar, que pelas eminentes qualidades de seus habitantes lhe cabe entre as Nações civilizadas? Por ventura aqueles mesmos, que há pouco desdenhavam a Nação Portuguesa pela sua decadência, e quase a queriam relegar para a costa fronteira de África, intentaram agora forçá-la a permanecer nesse estado de abjecção?...

A reconhecida prudência, sabedoria, e magnanimidade dos Príncipes da Europa; o respeito que eles professam aos severos princípios da Moral Pública, e da imparcial Justiça; a justa deferência à opinião geral dos homens livres de todas as Nações, e até a particular consideração, que há-de merecer um Povo ilustre, a quem o mundo moderno deve em grande parte a sua civilização, e os seus progressos, são em verdade motivos de segura confiança para a Nação Portuguesa, e que lhe não permitem duvidar das disposições pacíficas dos Soberanos, que à face da Europa tem posto por base de seus procedimentos as santas máximas da fraternidade universal, tão recomendada no Código Sagrado do Evangelho.

Contudo, se a despeito de todas estas considerações se acharem frustradas as esperanças dos Portugueses, eles depois de invocarem o Supremo Árbitro dos Impérios, como testemunha de suas intenções, e como auxiliador da justiça da sua causa, empregarão em sua justa e necessária defesa, todos os meios e forças que têm à sua disposição: eles sustentarão seus direitos com toda a energia de um povo livre, com todo o entusiasmo que inspira o amor da independência. Cada Cidadão será Soldado para repelir a agressão iníqua, para manter a honra nacional, para vingar a pátria ultrajada: e em último recurso eles virão antes talar seus campos, devastar suas províncias, reduzir a lastimosas ruínas suas habitações, e exterminar o nome Português do que hajam de submeter-se a um jugo estrangeiro, ou receber a lei de Nações, que lhe são na verdade superiores em forças, e poder, mas não em honra, e dignidade.

Jamais deixa de ser livre um povo que o quer ser. Este princípio adoptado em teoria, é derivado da natural elasticidade do coração humano, e comprovado com factos ilustres dos nossos dias. Os Gabinetes da Europa são assaz ilustrados para avaliarem até que ponto se podem desenvolver os recursos de um Povo honrado e brioso, quando se vê atacado iniquamente em seus mais sagrados direitos, e quando pugna pela sua liberdade e independência. Os acontecimentos recentes da última guerra mostraram à Europa admirada, que o carácter nacional dos Portugueses não havia degenerado do que fora no tempo dos Romanos, e dos Árabes, e em épocas mais modernas, e não menos gloriosas. Ele se desenvolveria pois com igual energia e constância, quando este Povo ilustre, pugnasse por tudo o que uma Nação sisuda e grave pode reputar de seu mais verdadeiro e sólido interesse. O Povo Português terá uma justa liberdade, porque a quer ter: mas se por extrema infelicidade lhe não couber em sorte conseguir esta ventura, será antes destruído, do que vencido ou subjugado. Nenhum de seus concidadãos sobreviverá às ruínas da sua Pátria; às ruínas da pública felicidade. Mas atentem os Monarcas e os Povos, que a injustiça e a imoralidade de uma guerra, por mais felizes que sejam aparentemente os seus resultados, nunca deixa de ser punida, cedo ou tarde, pelas Leis invariáveis da Ordem eterna que o Supremo Árbitro do mundo prescreveu a todos os seres, e às quais não pode esquivar-se nem a força, nem a grandeza, nem poder algum sobre a terra.

Lisboa 15 de Dezembro de 1820

Disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/portugal/documentos/manifesto_nacao.html




DOCUMENTO II.

Instruções datadas de 12 de agosto de 1822 de José Bonifácio de Andrada e Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, a Felisberto Caldeira Brant Pontes, encarregado de negócios em Londres. Publicado nos Cadernos do CHDD, a. VII, n. 12, p. 16-19.

Instruções para o sr. Felisberto Caldeira Brant Pontes, para o desempenho das funções de encarregado de negócios na corte de Londres, para que é nomeado.

1. Havendo S. A. R. por bem nomeá-lo seu encarregado de negócios junto de S. Majestade Britânica, lhe é por esta ocasião remetida a sua carta de crença, que o deve autorizar junto a aquele governo, a qual apresentará depois de ter previamente sondado as disposições do gabinete britânico, a fim de salvar o decoro deste reino e a dignidade do Príncipe Regente.

2. Procurará ter todo o conhecimento de quaisquer propostas, projetos e negociações da corte de Lisboa com a de Londres e do que descobrir fará prontos avisos, acompanhando-os dos documentos que melhor servirem para os ilustrarem, ou autenticarem, de forma que possa o nosso governo, quando convier, fazer deles uso ostensivo.

3. Assim que for recebido como encarregado de negócios do Brasil, como é de esperar, exporá com energia e clareza os motivos justos que teve o Brasil:

1º de não reconhecer mais a autoridade do Congresso de Lisboa;

2º de querer uma Assembléia Geral Constituinte Legislativa, dentro do seu próprio território, que tenha as mesmas atribuições da de Lisboa;

3º de considerar Sua Majestade El-Rei o sr. d. João VI em estado de coação e cativeiro, sendo por isso indispensável que S. A. R. tente salvá-lo deste afrontoso estado de péssimo exemplo às dinastias reinantes;

4° da necessidade de corresponder-se S. A. R. diretamente com as cortes estrangeiras.

Insistirá particularmente sobre o ponto da coação e cativeiro em que se acha El-Rei em Lisboa, o que só bastava para que S. A. R. e o Brasil não devessem obedecer aos decretos daquele Congresso, não obstante aparecerem eles revestidos da sanção d’El-Rei, a qual, por ser forçada, é nula por direito.

4. Mostrará, outrossim, que S. A. R., para conservar a realeza no Brasil e os decretos da augusta casa de Bragança, devia, como fez, anuir aos votos gerais dos brasileiros, que reclamavam a integridade do seu país e a sua independência política, como reino irmão e tão livre como o de Portugal, exigindo, para estes fins, a conservação de S. A. R. e aclamando-o, logo depois, seu Defensor Perpétuo.

5. Nestas circunstâncias, é indubitável a necessidade que tem o mesmo senhor para corresponder aos votos dos brasileiros, firmar seus direitos e defendê-los, de representar no Brasil toda a autoridade que compete ao chefe supremo do Poder Executivo, de obrar independentemente de Portugal e de travar relações políticas com as nações estrangeiras que comerciam com este país, com as quais de fato se passa a abrir a devida correspondência.

6. Procurará, portanto, obter desse governo o reconhecimento da independência política deste Reino do Brasil e da absoluta regência de S. A. R., enquanto Sua Majestade se achar no afrontoso estado de cativeiro a que o reduziu o partido faccioso das cortes de Lisboa.

7. Para que este reconhecimento se consiga além dos princípios de direito público universal que o abonam, fará ver com toda a dexteridade que os próprios interesses do governo britânico instam por aquele reconhecimento, pois, com ele:

1º se paralisam os projetos dos facciosos de Lisboa, que de tão perigoso exemplo podem ser aos governos legítimos das mais nações;

2º desempenha a Inglaterra o dever de antiga e fiel aliada da casa de Bragança e procede coerente com seus princípios liberais; e, reconhecendo a independência do Brasil

satisfaz ao dever que implicitamente contraíra quando, em outro tempo, reconhecera solenemente a categoria de reino a que este país fora então elevado;

4º utiliza no seu comércio, que de certo padeceria se duvidasse reconhecer a independência do Brasil, visto que este reino (à semelhança de Colômbia, que aliás não tem tantos direitos e recursos) está resolvido a fechar seus portos a qualquer potência que não quiser reconhecer nele o mesmo direito que têm todos os povos de se constituírem em Estados independentes, quando a sua prosperidade e o seu decoro o exigem.

Além disto, fará ver ao ministério britânico que, se os governos independentes das ex-províncias americanas espanholas têm sido por tais reconhecidos, e até mesmo de algum modo em Inglaterra, onde já se permitiu a entrada das suas bandeiras, com maior justiça deve ser considerado o Brasil, que há muito tempo deixou de ser colônia e foi elevado à categoria de reino pelo seu legítimo monarca, e como tal foi reconhecido pelas altas potências da Europa.

Mostrará, em última análise, que S. A. R., só levado pelas considerações de amizade e boa harmonia com as nações amigas e pelo respeito que consagra à opinião do gênero humano, é que patenteia os seus firmes princípios e a resolução destes povos, cuja independência pretende seja reconhecida, pois é bem óbvio e evidente que o Brasil não receia as potências européias, de quem se acha apartado por milhares de léguas, e nem tampouco precisa delas, por ter no seu próprio solo tudo o que lhe é preciso, importando somente, das nações estrangeiras, objetos pela maior parte de luxo, que estas trazem por próprio interesse seu.

8. Podendo acontecer que, apesar de estar o governo britânico intimamente convencido da justiça da nossa causa, receie, todavia, aventurar um reconhecimento ou uma decidida proteção, seja pelos princípios de neutralidade que tem proclamado em outras ocasiões, seja por temer que a nossa causa não prossiga e o entusiasmo brasileiro afrouxe, será do seu dever, no primeiro caso, mostrar que à Inglaterra, como antiga aliada e imediata interessada nesta questão, pertence de algum modo ingerir-se nela, ainda que não seja senão como medianeira, o que S. A. R. muito estimará; e, no segundo caso, será do seu dever mostrar que a opinião geral dos brasileiros, declarando-se por esta independência é firme e geral e que não existem divisões internas, exceto em alguns pouquíssimos europeus faltos de meios e influência.

Insinuará destramente ao governo inglês que os esforços que Portugal poderia fazer contra o Brasil já os tem feito e têm sido mal sucedidos, pois as suas tropas têm tornado a entrar pelo Tejo, repelidas pelos brasileiros, que estão dispostos a não receber mais nem uma só baioneta européia; e que, finalmente, Sua Majestade, em seu coração, não deixa de aprovar o procedimento de seu augusto filho, como lhe tem comunicado.

9. Deverá, mais, desenganar aquele governo sobre o caráter que vulgarmente se dá na Europa à nossa revolução. Mostrará, pois, que nós queremos independência, mas não separação absoluta de Portugal; pelo contrário, S. A. R. tem protestado, em todas as ocasiões e ultimamente no seu Manifesto às Potências, que deseja manter toda a grande família portuguesa reunida politicamente debaixo de um só chefe, que ora é o sr. d. João VI, o qual, porém, se acha privado da sua autoridade e oprimido pela facção dominadora das cortes. Todavia, bem que estes sejam os princípios verdadeiros do gabinete de S. A. R., poderá usar a este respeito da linguagem e insinuações que julgar mais próprias ao andamento dos negócios, servindo-lhe neste ponto de guia os sentimentos do governo inglês, de que tirará partido.

10. Proporá e insistirá com o governo inglês para que envie a esta corte os seus agentes diplomáticos, como uma retribuição essencialíssima de amizade e franqueza, fazendo sentir àquele governo que este passo parece indispensável, depois do manifesto de S. A. R. às potências.

11. Ainda que, no estado atual de Portugal, pouco tem o Brasil que recear-se de suas ameaças e má vontade, pois vê que aquele não pode enviar contra ele forças consideráveis, pelo estado deplorável de suas finanças e marinha e até pela divergência de opiniões e comoções internas, contudo, se souber que naquele reino se fazem novos preparativos contra a América, procurará ajustar alguns regimentos irlandeses, ou de qualquer outra nação onde for mais fácil este recrutamento, debaixo do disfarce de colonos e com condições favoráveis ao Tesouro Público deste reino, devendo estes soldados vir logo armados e equipados. Prometerá igualmente proteção e emprego aos oficiais artilheiros e engenheiros que quiserem aqui vir militar, contanto que sejam capazes e não sejam contrários à causa do Brasil.

12. O objeto de barcos de vapor é de muita vantagem e fica autorizado para promover a vinda de alguns já feitos, ou de artífices que os possam construir aqui; tendo, porém, em vista não [se] ingerir o governo na despesa dos mesmos, bastando tão-somente animar os empreendedores e prometer-lhes toda a proteção da parte de S. A. R. e até privilégios legais ao proprietário do primeiro barco de vapor que correr os nossos portos como paquete.

13. Pelo manifesto que S. A. R. dirige às nações amigas, se depreendem as vistas liberais do governo a favor dos que emigrarem para o Brasil; portanto, é desnecessário acrescentar coisa alguma a este respeito. 14. Fará traduzir e imprimir os periódicos e outras produções a bem da causa do Brasil, cuja publicidade aí for útil e contribuir a fixar a opinião pública da Grã-Bretanha a nosso favor. Para este fim, pela Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros lhe será remetida a Gazeta do Rio de Janeiro e outros impressos, que possam pô-lo ao fato das ocorrências do tempo.

15. Terá todo o cuidado em indagar os sentimentos particulares desse governo, para dirigir sem comprometimento as suas operações e terá todo o cuidado em não ser surpreendido.

16. Estenderá a mesma vigilância sobre os diplomáticos e enviados por Portugal a essa capital, cujos passos espreitará, a fim de contraminar suas tramas e projetos, do que dará pronta e regular conta ao governo de S. A. R. pela Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros.

17. Em aditamento ao art. 7º destas instruções, insinuará destramente ao ministro britânico, como mais um incentivo ao pronto reconhecimento da nossa independência, que a potência que for a primeira em reconhecê-la colherá, decerto, as mais decididas vantagens, sobretudo quando o reconhecimento desta independência é um serviço feito a El-Rei; que convirá muito à Inglaterra tomar o passo à França e aos Estados Unidos, pois é mui provável que estas duas potências se rivalizem em vir concertar conosco novas e mais estreitas alianças comerciais e políticas a bem da prosperidade do seu comércio.

18. Além do ordenado de dois contos e quatrocentos mil réis que lhe são concedidos pelo decreto da sua nomeação, fica autorizado para algumas despesas extraordinárias que forem indispensáveis a algum fim importante da sua comissão, do que dará parte ao governo para serem aprovadas, no que, porém, se lhe recomenda toda a economia, enquanto o Tesouro Público do Brasil não estiver em melhores circunstâncias.

Tudo o mais confia S. A. R. da sua inteligência, fidelidade e zelo, esperando que continuará a ser, como até agora, amigo da honra e decoro da pátria.

Palácio do Rio de Janeiro,

12 de agosto de 1822.

José Bonifácio de Andrada e Silva

Disponível em: http://www.funag.gov.br/chdd/index.php?option=com_content&view=article&id=225%3Agra-bretanha-primeira-instrucao&catid=58%3Alinksartigos&Itemid=89



DOCUMENTO III.

São Cristóvão, 28 de agosto de 1822

Meu querido e muito amado esposo

Perdoe mil vezes que eu ralhei na minha última carta, mas deve ser-lhe prova de amizade de ser muito triste de ter me deixado faltar notícias suas; agora estou contentíssima com suas regras de Lorena; não é preciso recomendar-me as suas qualidades; seja persuadido, depois de dar-me tantas provas de confiança antes perder tudo que faltar aos meus deveres e bem do Brasil; os papéis se vão imprimir na Gazeta.

Sinto muito dar-lhe notícias desagradáveis, mas não quero faltar à verdade, mesmo se é penoso a meu coração; a tropa de Lisboa entrou na Bahia, e dizem que desembarcou; a nossa esquadra não se sabe o que fez, se é falta de ânimo dela é preciso o mais rigoroso castigo, chegarão três navios de Lisboa, os quais dão notícias de que os abomináveis portugueses querem sua ida para lá mesmo se voltasse ao Brasil outra vez, e que ia ao poder executivo a decidir se deve vir mais tropa para cá, é certo que aprontem a toda pressa dois navios; ontem deram a falsa notícia que estava uma esquadra de Lisboa fora da Barra de modo que todo se aprontou para recebê-la com fogo e bala.

O Abregé106 tem tido uma questão com o Martim Francisco107, o último deve [ter] toda a razão, e o primeiro tem sido muito atrevido, de modo que era preciso eu o fazer calar; eu lhe escrevo isto porque penso que lhe representaram em baixo de outro modo falso.

Deram um tiro no autor do Diário108, e o General Usley na qual diz irão que haviam de dar outro no amigo José Bonifácio; a Polícia já anda vigiando este negócio.

Mandou-se dar castigo ao autor do Correio que estas três últimas vezes tem sido o mais que possível.

Chegou um certo Veríssimo109, dizendo que foi nomeado Encarregado dos Negócios dos Estados Unidos pelo Congresso de Lisboa; ele vem falar-me e o José Bonifácio me disse de eu ver se podia tirar-lhe alguma coisa pois soube que saiu mandado pelas Cortes, três meses faz de Lisboa, desembarcou na América inglesa, tratando de negócios deles, e por ordem dos mesmos veio para cá até mais ordenar, é muito mau sujeito, e espertíssimo, de modo que anda sempre em companhia de espias nossos.

O povo e muitos outros falam no por os esquadrões da cavalaria a pé com muito atrevimento e barulho crê que era bom deixar este negócio em esquecimento. O José Bonifácio mais lhe falará.

Recebo neste instante sua carta de Taubaté que muito lhe agradeço em lhe merecer a amizade que me prova sendo certamente todo meu ser, não falando das muitas saudades suas que eu tenho, pedindo-lhe que não fique mais ausente que um mês; o José Bonifácio lhe dirá o mesmo; a sua presença é muito preciso sendo São Paulo muito longe para dar prontas.

Receba mil abraços e as expressões do mais terno amor e amizade desta sua esposa que o ama ao extremo.

Leopoldina




DOCUMENTO IV.

 

Carta de José Bonifácio a D. Pedro de Alcântara.
"Senhor, as Cortes ordenaram a minha prisão por minha obediência a V. Alteza. E no seu ódio imenso de perseguição atingiriam também aquele que se preza em o servir com lealdade e dedicação do mais fiel amigo e súdito. O momento não comporta mais delongas ou condescendências. A revolução já está preparada para o dia de sua partida. Se parte, temos a revolução do Brasil contra Portugal e Portugal atualmente não tem recursos para subjugar um levante, que é preparado ocultamente para não dizer quase visivelmente. Se fica, tem V. Alteza contra si o povo de Portugal, a vingança das Cortes, que direi?! Até a deserdação, que dizem já estar combinada. Ministro fiel que arrisquei tudo por minha Pátria e pelo meu Príncipe, servo obedientíssimo do Senhor D. João VI, que as Cortes tem na mais detestável coação, eu, como Ministro, aconselho a V. Alteza que fique e faça do Brasil um reino feliz, separado de Portugal, que é hoje escravo das Cortes despóticas. Senhor, ninguém mais do que sua esposa, deseja sua felicidade e ela lhe diz em carta que com esta será entregue, que V. Alteza deve ficar e fazer a felicidade do povo brasileiro, que o deseja como seu soberano, sem ligações e obediências às despóticas Cortes portuguesas, que querem a escravidão do Brasil e a humilhação do seu adorado Príncipe Regente.

Fique, é o que todos pedem ao Magnânimo Príncipe que é V. Alteza, para orgulho e felicidade do Brasil. E se não ficar correrão rios de sangue nesta grande nobre terra, tão querida do seu Real Pai, que já não governa em Portugal, pela opressão das Cortes; nesta terra que tanto estima V. Alteza e a quem tanto V. Alteza estima”.





DOCUMENTO V.

Decreto do imperador d. Pedro I no qual ordena a execução do Tratado de Paz e Reconhecimento da Independência do Brasil por Portugal. Em anexo segue o tratado impresso e os artigos que têm por maior objetivo a retomada dos laços de amizade e comércio entre os dois Estados.

Conjunto documental: Independência do Brasil: acontecimentos posteriores (impressos)
Notação: 740.3
Datas-limite: 1822-1826
Título do fundo: SDH - Diversos - "Caixas Topográficas"
Código do fundo: 2H
Argumento de pesquisa: independência do Brasil
Data do documento: 10 de abril de 1826
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): doc. nº 21

DECRETO

Achando-se mutuamente ratificado o Tratado assinado nesta Corte aos vinte e nove de agosto do ano próximo passado pelos meus plenipotenciários e o senhor dom João Sexto, rei de Portugal e Algarves, meu augusto pai, mediante o qual pondo-se o desejado termo a guerra que infelizmente se fizera necessária entre os dois Estados, foi justamente reconhecida a plena Independência da nação brasileira, e a suprema dignidade, a que fui elevado pela unânime aclamação dos povos, com a categoria de Imperador Constitucional, e seu Defensor Perpétuo; hei por bem ordenar que se dê ao dito Tratado a mais exata observância e execução, como convém à santidade dos Tratados celebrados entre as nações independentes e a inviolável boa fé, com que são firmados, o visconde de Inhambupe de Cima, do meu Conselho de Estado, ministro e secretário dos Negócios Estrangeiros, o tenha assim entendido, e faça executar, expedindo as devidas participações e exemplares impressos para as estações competentes desta Corte e províncias do Império, com as ordens mais positivas para que se cumpram e guardem como neles se contem. Palácio do Rio de Janeiro em dez de abril de mil oitocentos e vinte e seis.

Com a rubrica de SUA MAJESTADE IMPERIAL

Visconde de Inhambupe

[Tratado]

EM NOME DA SANTÍSSIMA E INDIVISÍVEL TRINDADE

SUA MAJESTADE FIDELÍSSIMA Tendo constantemente no seu real ânimo os mais vivos desejos de restabelecer a paz, amizade, e boa harmonia entre os povos irmãos[6], que os vínculos mais sagrados devem conciliar e unir em perpétua aliança, para conseguir tão importantes fins, promover a prosperidade geral e segurar a existência política, e os distintos futuros de Portugal, assim como os do Brasil; e querendo de uma vez remover todos os obstáculos, que possam impedir a dita aliança, concórdia, e felicidade de um e outro Estado, por seu diploma de treze de maio do corrente ano, reconheceu o Brasil na categoria de Império Independente, e separado dos reinos de Portugal e Algarves, e a seu filho DOM PEDRO por Imperador, cedendo e transferindo de sua livre vontade a soberania do dito Império ao mesmo seu filho, e seus legítimos sucessores, e tomando somente, e reservando para a sua pessoa o mesmo título.

E estes augustos senhores, aceitando a mediação de SUA MAJESTADE BRITANICA para o ajuste de toda a questão incidente a separação dos dois Estados, tem nomeado plenipotenciários, a saber [...].

E vistos e trocados os seus plenos poderes, convieram e que, na conformidade dos princípios expressados neste preâmbulo, se formasse o presente Tratado.

ARTIGO PRIMEIRO

SUA MAJESTADE FIDELÍSSIMA reconhece o Brasil na categoria de Império independente, e separado dos reinos de Portugal e Algarves; e a seu sobre todos muito amado, e prezado filho DOM PEDRO por Imperador, cedendo, e transferindo de sua livre vontade a soberania do dito Império ao mesmo seu filho e a seus legítimos sucessores, SUA MAJESTADE FIDELÍSSIMA toma somente e reserva para a sua pessoa o mesmo título.

ARTIGO SEGUNDO

SUA MAJESTADE IMPERIAL, em reconhecimento de respeito e amor a seu augusto pai o senhor DOM JOÃO SEXTO, anui a que SUA MAJESTADE FIDELÍSSIMA tome para sua pessoa o título de Imperador.

ARTIGO TERCEIRO

SUA MAJESTADE IMPERIAL promete não aceitar proposições de quaisquer colônias portuguesas para se reunirem ao Império do Brasil.

ARTIGO QUARTO

Haverá de agora em diante paz e aliança e a mais perfeita amizade entre o Império do Brasil, e os reinos de Portugal e Algarves [...]

ARTIGO QUINTO

Os súditos de ambas as nações, brasileira, e portuguesa, serão considerados e tratados nos respectivos Estados como os da nação mais favorecida e amiga, e seus direitos e propriedade religiosamente guardados e protegidos; ficando entendido que os atuais possuidores de bens de raiz serão mantidos na posse pacífica dos mesmos bens.

[...]

ARTIGO DÉCIMO

Serão restabelecidas desde logo as relações de comércio entre ambas as nações, brasileira e portuguesa, pagando reciprocamente todas as mercadorias quinze por cento de direitos de consumo provisoriamente, ficando os direitos de baldeação e reexportação da mesma forma, que se praticava antes da separação.

ARTIGO UNDÉCIMO

A recíproca troca das ratificações do presente Tratado se fará na Cidade de Lisboa, dentro do espaço de cinco meses, ou mais breve, se for possível, contados do dia da assinatura do presente Tratado.

[...]

Feito na cidade do Rio de Janeiro aos vinte e nove dias do mês de agosto do ano de nascimento de nosso senhor Jesus Cristo de mil oitocentos e vinte e cinco.