Patrimônios da Humanidade

Patrimônios da Humanidade

02 fevereiro 2013

Memória, Patrimônio e Diversidade: perspectivas para a construção da identidade individual e coletiva.


Memória, PATRIMÔNIO e diversidade: perspectivas para a construção da identidade individual e coletiva[1].

Percursos Históricos, Ano II, vol. jan., série 02/02, 2013.

SOARES, Marilda[2]

Resumo:

O texto descreve o pensamento que norteou a elaboração do Projeto de Extensão Memória e Patrimônio: O Ensino de História e os Acervos Escolares, realizado pela Universidade de São Caetano do Sul (USCS), em 2012, em parceria com o Plano Nacional de Formação dos Professores da Educação Básica (PARFOR), financiado pelo Ministério da Educação e Cultura, cujo objetivo foi apresentar aos professores novas possibilidades de abordagem da memória, do patrimônio, da identidade e da diversidade cultural, como conceitos a serem incorporados ao trabalho docente e à formação dos alunos do Ensino Fundamental e Médio. O Curso estruturou-se para dar ênfase aos temas: I. Memória e História; II. Patrimônio histórico e preservação; III. Historiografia didática e memória; IV História oral e memória; e V. Registro e análise da memória escolar. Com base nessas temáticas, o artigo aborda a produção cultural e sua permanente renovação entre os grupos humanos, por meio da tradição, das linguagens, das técnicas, dos ritos e celebrações; trata da preservação dessa herança, ou patrimônio cultural, como aspecto dependente da valorização social e da ação dos poderes públicos, que administram os bens reconhecidos como importantes para uma comunidade ou nação, por meio da elaboração de leis, regulamentos, normas e práticas que impeçam sua destruição, bem como por ações educativas que contemplem essa valorização. 


O objetivo central da reflexão é apontar para o fato de que as produções culturais relacionam-se com a construção da memória individual e coletiva, e são criadoras e suportes do sentimento de identidade entre todos que as comemoram e preservam. Conceitua as produções culturais de ordem popular e erudita, materiais e imateriais, bem como as abordagens teórico-metodológicas atuais acerca da temática em destaque. Enfatiza a necessidade de uma educação patrimonial e de uma formação identitária que contemplem as diferentes produções culturais, no sentido de expor a diversidade como integrante das relações interpessoais, característica e riqueza dos diferentes povos e sujeitos sociais. Procura ressaltar a relevância e urgência de se pensar, na escola, a igualdade, a justiça e os direitos, para que não sejam apenas expressões destituídas de sentido do ponto de vista das práticas sociais, mas partes constitutivas das múltiplas identidades que permeiam os processos de formação dos indivíduos, povos e grupos de convívio.



Palavras-chave: Memória, Identidade, Patrimônio, Valores, Representações.

Financiamento: FNDE/MEC – PARFOR





A temática da Memória envolve a ideia de manutenção das produções humanas, dos saberes, valores e dos feitos produzidos ao longo do tempo pelos diferentes sujeitos sociais. Interessante notar que essa é a própria função da História, desde seu nascimento, como afirmou Heródoto, há cerca de 2.500 anos – quando publicou o primeiro livro que recebeu o nome de Históriaao definir como seu objetivo a investigação e a preservação do conhecimento sobre as ações humanas, para que sua memória não se perdesse com o tempo.

Memória é fonte de conhecimento que abarca as reminiscências individuais ou coletivas, os documentos em diferentes suportes e os monumentos. Enfim, tudo o que os grupos humanos elegeram para ser mantido e deixado para as gerações futuras, o que pressupõe processos de escolha dos valores mais significativos, sejam materiais ou imateriais, e que devem ser lembrados, memorados em grupo, ou comemorados pelas sociedades, como parte de uma herança comum, um legado a ser preservado. Mas a preservação das produções humanas depende da valorização dos legados culturais, da identidade individual e coletiva, do patrimônio, do pertencimento.

Assim, é fundamental que os indivíduos tenham acesso à Educação, ao conhecimento das diferentes produções humanas, e que, ao mesmo tempo, encontrem nessa Educação espaço para se sentirem representados nos conteúdos educativos, como parte integrante da sociedade, criando o sentimento de pertencimento ao seu mundo e ao seu tempo.

Memória e Patrimônio cultural.

Memória é palavra de origem latina, memor, que significa “aquele que se lembra”. Ou grega, mnemo, que apresenta o mesmo sentido de preservação de reminiscências.

Patrimônio é palavra de origem latina, patrimonium, que no princípio constituía o domínio do chefe familiar (pater famílias), sobre os bens materiais, bem como sobre sua esposa e filhos, seus servos, escravos, terras e demais riquezas.

Na Idade Contemporânea, o termo “patrimônio” passou a significar a herança cultural e natural que tem sido preservada por determinado povo ou pela humanidade, e a palavra “memória” passou a abarcar todas as formas de registo de feitos, sentimentos ou eventos, de tal forma que não podem ser compreendidas separadamente.

Patrimônio cultural é o conjunto das produções culturais expressivas para uma sociedade, contidas nos saberes, técnicas, formas e signos produzidos pelos grupos humanos, e que auxiliam na construção, manutenção ou transformação da identidade e da memória coletivas. 

O termo “herança cultural” passou, contemporaneamente, a ser utilizado para definir o patrimônio cultural, referindo-se a todas as produções culturais, materiais ou imateriais, preservadas pelas gerações passadas e transmitidas às novas gerações em diferentes suportes: construções, artefatos, arte, filosofia e ciência. E, nas últimas décadas. a tradição, os ritos, as técnicas, os costumes, os padrões comportamentais e outras formas de expressão cultural também passaram a ser valorizados como parte dessa herança cultural.

Cultura material e cultura imaterial.

A cultura material abrange as produções tangíveis, ou seja, que têm materialidade, que podem ser tocadas, como os edifícios, monumentos, mobiliário, peças de vestuário, e tudo mais que é fabricado com função utilitária ou simbólica.

Os objetos da cultura material são denominados artefatos, palavra de origem latina, ars,  criação ou habilidade, e factum, derivado de factus, feito, derivado de facere, o ato de criar, produzir o novo. Assim, não importa se objetos raros e caros – uma grande construção em estilo neogótico, pinturas renascentistas, objetos de cristal da Bavária – ou comuns, com valor utilitário – pratos e talheres de uso cotidiano, tijolos em adobe ou copos descartáveis – todos são igualmente produtos da cultura material.

Esses produtos contêm significados que podem se referir ao corpo individual ou ao corpo social, mas em geral, são preservados como forma de manutenção dos referenciais de identidade. Assim, todos os artefatos contêm e expõem os recursos naturais ou industriais disponíveis, as técnicas, os valores estéticos, as cores, as formas, os gostos de cada tempo e lugar, bem como signos de identidade coletiva.

Um exemplar, aparentemente simples, pode conter elementos fundamentais para a decifração dos valores humanos, como é o caso dos cachimbos usados por africanos e afrodescendentes no Brasil escravista.  Trata-se de objetos decorados com símbolos das etnias e que, por serem desconhecidos, escapavam ao controle imposto, representando um ato de resistência cultural.

Dentre os produtos da cultura material têm maior visibilidade as grandes construções, os monumentos que são lugares da memória coletiva, dentre os quais estão antigas e novas “maravilhas” do mundo e as  ruínas de antigas civilizações construídas há milhares de anos e preservadas pela população local e pela humanidade.

Monumento, do latim monumentum, lembrança ou memorial, derivada de monere, lembrar, advertir, ou manere, permanecer, representa o testemunho de um tempo histórico. Dessa forma, a palavra monumento é um conceito que se aplica aos marcos de visibilidade dos sítios históricos e arqueológicos, como também às produções de pequena dimensão, pois grandes os pequenos, os artefatos são exemplares de cultura material e de cultura imaterial.

Em uma grande construção, por exemplo, uma catedral, há várias produções culturais materiais e imateriais, como o saber-fazer de todos os que nela trabalharam, desde as primeiras ideias, o projeto arquitetônico, a produção e assentamento dos tijolos, as esculturas e objetos sacros que compõem a decoração dos altares. Além disso, nas formas de utilização, durante os cerimoniais, estão contidos os diferentes saberes ligados à religiosidade, à liturgia e aos rituais que se realizam ali.

A expressão “cultura imaterial” refere-se a todos os saberes, pensamentos, crenças e concepções de mundo, expressando-se na obra de arte, nos tratados filosóficos, jurídicos, científicos, didáticos ou religiosos, como no saber-fazer cotidiano, na dança popular, no bordado, na culinária, nas práticas construtivas, nas formas de expressão e até na gestualidade.

Interpretação do patrimônio e das produções culturais.

Há estudos voltados à análise e compreensão dos signos e representações contidos nas produções culturais e o modo como são apreendidos individual ou socialmente.  

Esse campo de investigação é denominado Semiologia e/ou Semiótica, palavras vindas do grego semeîon, que se origina na palavra sema, ou seja, sinal, signo, símbolo ou representação. Assim, a Semiologia e a Semiótica abrangem estudos do conteúdo simbólico das produções culturais humanas, materiais ou imateriais.

Charles Pierce, teórico da Semiótica, preocupado com a compreensão linguística, procurou sistematizar os passos para a compreensão dos signos e definiu: em primeiro lugar, é necessária a capacidade de observar, admirar; em segundo lugar, de identificar as características do que está sendo observado; e em terceiro lugar, da comparação com outros signos observados, para generalização dos aspectos identificados.

Essa definição encontra ressonância nos estudos de Semiologia. Em A Moral dos Objetos, Jean Baudrillard propôs o entendimento dos signos, dos significados dos artefatos, pois segundo ele, além da materialidade, dos caracteres físicos como matéria-prima, forma e cor, os objetos são dotados de finalidades, representações e significados individuais e sociais.

As produções pictóricas, por exemplo, quando retratam pessoas muitas vezes procuram vinculá-las a objetos que sejam representativos de moda, gosto ou status social, estabelecendo ou expondo signos e representações de lugar e prestígio social.

Um objeto ou construção, por exemplo, precisam ser observados para que se possa decifrar o sentido de sua existência, pois há uma multiplicidade de informações contidas nos artefatos e monumentos, que são documentos a informar sobre técnicas e relações sociais.

Quando um objeto (cultura material) e/ou um saber (cultura imaterial)  são reconhecidos como patrimônio, ou seja, um bem coletivo, os poderes públicos realizam o ato administrativo de tombamento para preservar seu valor histórico, artístico, urbanístico, ambiental, identitário ou afetivo.

Por essa razão, tanto móveis, quanto imóveis, fotografias, monumentos, estradas, pontes, cemitérios, pratos da culinária, festas folclóricas, saberes populares podem ser tombados, assim como jardins, cascatas e florestas e espaços de culto religioso.

Compreender os objetos, suas formas, funções e significados, é uma das tarefas dos especialistas em cultura, como os antropólogos, arqueólogos, museólogos e artistas plásticos.

O estudo dos artefatos pode conduzir ao entendimento do conhecimento técnico de certa época histórica, de certa cultura, de certo lugar. Do mesmo modo, pode revelar os padrões estéticos, as possibilidades técnicas e até as formas de constituição do status social, pois existem aqueles que produzem os objetos, aqueles que se apropriam dos objetos e aqueles que os utilizam.

Desconstrução da perspectiva tradicional.

Nossa sociedade tradicionalmente valoriza os produtos da cultura erudita, chamada pelo senso comum simplesmente de “cultura”, enquanto as manifestações populares e espontâneas são (des)qualificadas como inferiores, por não terem sido elaboradas nos meios acadêmicos.

Do mesmo modo, as produções dos grupos sociais minoritários ou dominados foram sistematicamente inferiorizadas, estereotipadas e/ou marginalizadas, consideradas como menores frente aos produtos da Filosofia, Ciência e Literatura, próprios dos meios acadêmicos e acessíveis, muitas vezes, apenas aos meios sociais elitizados.

É preciso, portanto, vencer o desafio de desconstruir a História e a Educação tradicionais, e acrescentar uma visão crítica à formação dos professores, que têm responsabilidade, juntamente com a família e a sociedade, pela formação identitária que valorize e preserve a multiplicidade de manifestações socioculturais dos diferentes grupos humanos.

A partir da elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), as temáticas da identidade, da pluralidade e da diversidade étnica e cultural ganharam espaço nos currículos escolares.

Os PCN apontam a necessidade de abordar a pluralidade e a diversidade nos seguintes termos:

Este tema propõe uma concepção da sociedade brasileira que busca explicitar a diversidade étnica e cultural que a compõe, compreender suas relações, marcadas por desigualdades socioeconômicas, e apontar transformações necessárias. Considerar a diversidade não significa negar a existência de características comuns, nem a possibilidade de constituirmos uma nação, ou mesmo a existência de uma dimensão universal do ser humano. Pluralidade Cultural quer dizer a afirmação da diversidade como traço fundamental na construção de uma identidade nacional que se põe e repõe permanentemente, e o fato de que a humanidade de todos se manifesta em formas concretas e diversas de ser humano (BRASIL, 1997, p. 16).


A formação histórico-social do Brasil passou a ser tratada em tais documentos a partir da perspectiva da pluralidade étnica e cultural, apontando e valorizando os povos que formaram o Brasil com seu legado étnico e linguístico, desde os tempos da colonização até a atualidade, com diferentes origens nacionais, como integrantes do processo de formação do Brasil.

A própria hierarquização da sociedade passa a ser pensada como fruto do processo de dominação, explicada historicamente pelo contexto da colonização e da escravidão, com desdobramentos que ainda se mostram nas diferenças econômicas, políticas e socioculturais que reforçam estereótipos e preconceitos que precisam ser superados.

Como afirma Antonia Nayakama, a versão europeia da História brasileira deixou de contemplar o aspecto da diversidade, constituindo uma imagem negativa dos ameríndios e afrodescendentes, de modo que hoje é necessário descontruir essa visão, por meio da valorização da pessoa e da promoção da igualdade (NAYAKAMA, 2007, p. 126).

O ambiente e o currículo escolar favorecem a identificação da pluralidade de indivíduos, povos e culturas, a existência de diferentes grupos humanos com seus hábitos, costumes, crenças, gestos, gostos, origens, etc. Assim, é fundamental a ampliação das noções de identidade e alteridade, e que o aluno se perceba como integrante dessa diversidade, para que possa desenvolver posturas éticas, respeitosas, solidárias e humanizadas.

Do ponto de vista da legislação educacional brasileira, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9394, de 1996, no artigo 27, determina que os conteúdos curriculares da educação básica devem observar, como diretriz, os direitos dos cidadãos, o respeito ao bem comum e à ordem democrática. Mais à frente, na Seção II – Da Educação Infantil, o artigo 29 define que a Educação Infantil, como primeira etapa da Educação Básica, tem por objetivo o desenvolvimento físico, psicológico, intelectual e social da criança, ou seja, seu desenvolvimento integral (BRASIL, 1996, pp. 11-12).

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1998, p. 1), no seu artigo 3º, determinam que todas as instituições de Educação Infantil do país deverão respeitar, como fundamentos norteadores, a ética, a solidariedade, o respeito, os direitos e deveres de cidadania, a ordem democrática e os princípios estéticos da sensibilidade e da diversidade de manifestações artísticas e culturais.

Devido à dificuldade de ultrapassar a mentalidade excludente, resquício das práticas escravistas do Brasil colonial e imperial, foram necessários muitos embates pelo direito, pela democracia, pela cidadania, o que se mostra, hoje, em conquistas como a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que determina, no artigo 26-A, que nos níveis fundamental e médio, em estabelecimentos oficiais ou particulares, é obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, incluindo a História da África e dos africanos e afrodescendentes e sua contribuição para a formação da sociedade nacional brasileira (BRASIL, 2003).

Construção da identidade e respeito à diversidade.

A educação para a construção da identidade e do respeito à diversidade está assentada no exercício da cidadania e da valorização dos indivíduos, independente de cor, raça, sexo, religião ou outros aspectos que os diferenciem, e é parte de um processo que não se realiza em pouco tempo. Isso porque, como afirmou Lilia Schwarcz (1998), as práticas excludentes, por não fazerem parte e uma política discriminatória oficial, são consideradas minoritárias ou excepcionais, mas que são, na verdade, comuns e reincidentes.

Como afirma José Carlos Libâneo, no artigo As Diretrizes Curriculares da Pedagogia – Campo Epistemológico e exercício profissional do Pedagogo, não é a escola que produz as desigualdades sociais básicas, mas ela pode reproduzir formas de discriminação de gênero, étnica ou intelectual. Por essa razão, o autor afirma:

Todo educador que tem clareza do seu papel social e político sabe que a escolarização básica obrigatória tem um significado educativo, político e social, implicando o direito de todos, em condições iguais de oportunidades, ao acesso aos bens culturais, ao desenvolvimento das capacidades individuais e sociais, à formação da cidadania, à conquista da dignidade humana e da liberdade intelectual e política. (LIBÂNEO, 2005).


A publicação Orientações Curriculares: expectativas de aprendizagem para a educação étnico-racial na Educação Infantil, Ensino Fundamental e Médio (SÃO PAULO, 2008), apresenta a proposta de que os professores trabalhem noções e conceitos fundamentais para a desconstrução e superação do preconceito:

A identidade étnico-racial no Brasil e nas demais sociedades multiculturais, poliétnicas e plurirraciais é um fator de escolha e de posicionamento político dos indivíduos e grupos da sociedade, já que é vivida e percebida em um contexto dinâmico de relações (SÃO PAULO, 2008, p. 35).


Assim, essas orientações curriculares propõem a abordagem das noções de estigma, estereótipo, marginalização, preconceito, racismo, negro, mulato, afro-brasileiro e afrodescendente em todas as etapas de escolarização (SÃO PAULO, 2008, pp. 35-40).

Estigma e estereótipo constituem-se segundo as mesmas premissas socioculturais, marcando social e culturalmente os indivíduos e grupos humanos e tornando-os estigmatizados, pois marca pejorativamente pelas características físicas, culturais, sexuais, religiosas ou outras.

A discriminação se estabelece pela não aceitação da diferença, seja esta de ordem social, étnico-racial, religiosa, cultural, econômica, política, linguística ou fenotípica. É com base nessa diferença que um indivíduo que não compreende ou respeita a diversidade discrimina outro, na medida em que este outro não participa do seu grupo próximo ou, ainda, não tem com ele qualquer vínculo identitário.

Preconceito é um termo próximo aos conceitos de estigma, estereótipo e discriminação, em que o conceito prévio sobre o “outro” determina o afastamento ou a aersão ao outro, atitudes muitas vezes calcadas em informações falsas ou crenças infundadas.

Esses processos de inferiorização e exclusão o “outro”, enquanto pessoa ou cultura, são denominados marginalização, impondo a inferiorização ou exclusão da vida social, econômica, política, cultural, ou seja, colocando-o à margem do sistema e das relações cotidianas.

Propondo a superação de tais perspectivas excludentes, as Orientações Curriculares apontam:

É fundamental que atentemos para outros tipos de inclusão sejam feitas nas escolas, especialmente a questão racial, que em um discurso “politicamente correto” não existe, mas que ao se olhar de perto sabemos que permeia o ambiente escolar, de forma velada ou explícita, porém, presente. Precisamos atentar prioritariamente à educação infantil, pois atitudes rotineiras, meias palavras ou gestos involuntários podem representar a máscara do preconceito exibida por nossa sociedade e deixar marcas significativas na educação das crianças pequenas (SÃO PAULO, 2008, p. 84).


Para tanto, é essencial a construção valorativa das histórias dos povos que formaram cultural e historicamente a nação brasileira, sem distinção ou preconceito.

Os avanços, quanto à mudança de mentalidade já podem ser notados, pois além de parâmetros, diretrizes, orientações e materiais didáticos específicos para abordar a questão étnico-racial, o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) determinou que sejam excluídos de suas publicações os materiais que veicularem estereótipos e preconceitos de condição social, étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de idade ou de linguagem, assim como qualquer outra forma de violação de direitos.

Memória, patrimônio, identidade e diversidade.

A formação dos valores éticos e das atitudes positivas frente à diversidade de manifestações culturais, étnicas, humanas e de solidariedade inclui-se nos objetivos do processo de ensino-aprendizagem, desde a Educação Infantil até os mais elevados níveis de escolaridade. Porém esta é uma construção possível somente a partir do desenvolvimento de conteúdos conceituais e atitudinais, relacionando-se à percepção da própria identidade e ao respeito à alteridade e à identidade do “outro”.

É fundamental iniciar esse trabalho na Educação infantil, pois o respeito é algo que se constrói ao longo da vida, não apenas na idade adulta. Além disso, a sociedade brasileira é o resultado de um processo de formação histórico-social no qual estiveram presentes diferentes povos e culturas, tendo a miscigenação e a diversidade como uma das suas principais características.

Os educadores podem introduzir atividades que permitam a percepção da diversidade do povo brasileiro, e dos demais povos, como atributo constitutivo das nacionalidades e dos grupos de convívio. Do mesmo modo, estabelecer as noções de identidade e alteridade. E, para tanto, esses conhecimentos devem fazer parte da formação docente.

Os estudos realizados atualmente sobre a formação docente e o processo de ensino-aprendizagem apregoam mudanças na concepção de educação e da sua relação com a construção de uma sociedade inclusiva, o que pressupõe uma educação patrimonial, de valorização das manifestações culturais e da diversidade, no sentido de favorecer a compreensão do “eu” e do “outro”, ressignificando os conteúdos escolares.

Sobretudo, é fundamental que se crie na escola um ambiente favorável à preservação da memória, não apenas da memória dos objetos raros musealizados, ou dos “grandes” eventos da História da humanidade, mas também da memória local, individual e da própria unidade de ensino, incluindo o próprio aluno como sujeito da História, um ser atuante e produtor de saberes e cultura, com um lugar único e importante no mundo, um sujeito histórico de seu tempo.

Concluindo.

Trabalhar com os conceitos de memória, cultura, patrimônio, identidade e de diversidade pressupõe a abordagem da alteridade, da percepção do “outro” e das diferenças entre os indivíduos ou grupos. Mas é fundamental que se diga que a percepção das diferenças não significa a negação, exclusão ou eliminação do “outro”.

Contudo, em sociedades e épocas históricas nas quais a oposição entre os grupos humanos foi a base do processo de definição das formas de poder, houve a eleição da alteridade, da diferença, como critério para a afirmação de princípios de superioridade sociocultural, legitimando a opressão, a violência e mesmo a eliminação física de certos indivíduos ou grupos humanos.

Na sociedade atual, vemos o surgimento de grande quantidade de grupos, muitas vezes denominadas “tribos”, que afirmam suas identidades por meio de roupas, cabelos, gostos musicais etc. Do mesmo modo, podemos constatar a agregação de indivíduos a grupos, abertos ou fechados, que comungam preceitos religiosos, filosóficos, profissionais ou outros.

Esse é um processo que se faz e refaz constantemente, em todo tempo e lugar. Dessa forma, é apropriado abordar em sala de aula a temática e auxiliar o aluno a construir a noção e o conceito de pertencimento, discutindo as várias formas de inserção cultural, étnica e social, como um caminho possível para a valorização das identidades individuais e coletivas dos alunos.

Poder-se-ia definir identidade como a identificação de um indivíduo ou grupo social com um ou mais aspectos ou características individuais ou coletivas, a partir da percepção das produções materiais e imateriais humanas e a noção de pertencimento, abordando as identidades étnica, cultural, nacional e tantas outras. Essas temáticas são fundamentais para a construção do indivíduo, no que se refere à percepção de si no mundo.

E esta é uma tarefa que deve ser iniciada na Educação Infantil, contribuindo para a estruturação da personalidade e do caráter, formando para o exercício da cidadania plena. Daí a importância de tais concepções fazerem parte da formação docente, de modo efetivo, para que a constituição da identidade, individual o coletiva, seja pensada como um processo cultural permanente e dinâmico. Felizmente, em épocas mais recentes, vimos surgir leis contrárias às práticas excludentes, como expressão de uma vontade política de rever e superar as diferentes formas de preconceito incorporadas e reproduzidas nas relações sociais.

A sociedade brasileira é fruto do convívio de diferentes povos e do processo de miscigenação. Dessa forma, é necessário o estabelecimento de projetos educativos que favoreçam a superação dos preconceitos e valorizem as características culturais e históricas de todos os integrantes da sociedade. E, para tanto, é fundamental que as crianças, desde cedo, possam refletir sobre as diferenças, incorporando a noção de alteridade, não no sentido de discriminar, mas de respeitar o “eu” e o “outro”, o que pode colaborar para a formação de uma sociedade menos preconceituosa, mais igualitária e justa. 


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[1] Publicado em: Anais do I Seminário de Educação da USCS. São Caetano do Sul: SEMED/USCS, 2012.
[2] Professora Pesquisadora, responsável pela Coordenação Didática do Curso de Extensão Memória e Patrimônio: o Ensino de História e os Acervos Escolares (USCS/PARFOR-MEC).